Resenhas
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Economia e Feminismo: Expansão de Fronteiras para a Igualdade
Resenha: PÉRIVIER, Hélène (2023): A Economia Feminista: Por que a ciência econômica precisa do feminismo e vice-versa. Trad. Maria Alice Doria. 1ª. ed. Bazar do Tempo, 2023. 184 p.
Tânia Aparecida Gomes Paes
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Os Custos Sociais e Políticos da Exploração Financeira
Resenha de Resgatar a função social da economia: uma questão de dignidade humana, de Ladislau Dowbor –– Editora Elefante: São Paulo, 2022.
Danilo Moraes Nascimento
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Centralizar o cuidado: a teoria da reprodução social movendo fronteiras entre as esferas pública e privada
Resenha: BHATTACHARYA, Tithi. Teoria da Reprodução Social: remapear a classe, recentralizar a opressão. São Paulo: Elefante, 2023.
Ana Carolina Brito Brandão
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O amor como ação transformadora: a revolução ética de bell hooks em Tudo sobre o amor
Resenha de: hooks, bell. Tudo sobre o amor. Novas perspectivas. Editora Elefante, 2021.
Camila Fernandes
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O Fantasma do “gênero” e a luta por imaginar
Resenha de Quem tem medo do gênero, de Judith Butler (Boitempo, 2024, 272 p.).
Gustavo Frota Lima e Silva
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Organização como uma ecologia diversa: uma teoria para o problema da organização política
Ana Claudia Teixeira
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Integrar para não entregar? a Amazônia do século XXI segundo Ricardo Abramovay
Alba Fernanda Pinto de Medeiros
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Relatos do amanhã: discussão sobre estados do futuro no G20 Social
Jordano Roma e Maira Rodrigues
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Imaginar o fim do capitalismo – antes do fim do mundo
Resenha de Realismo Capitalista, de Mark Fisher.
Gustavo Frota Lima e Silva
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O drama dos muros
Resenha de Estados Murados, Soberania em Declínio, de Wendy Brown Editora Kazimira 2024, Tradução de Mariana Strasscapa.
Gustavo Frota Lima e Silva
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Além do “sim” e do “não”
Resenha de O direito ao sexo: feminismo no século vinte e um, de Amia Srinivasan (Todavia, 2021).
Gustavo Frota Lima e Silva
O Fantasma do “gênero” e a luta por imaginar
Resenha de Quem tem medo do gênero, de Judith Butler (Boitempo, 2024, 272 p.).
Em Quem tem medo do gênero?, publicado no Brasil em fevereiro de 2024, Judith Butler destaca que falar em “gênero” tem sido considerado uma ameaça à família, ao casamento, às crianças, à segurança nacional e, em suas versões mais dramáticas, à civilização e ao próprio “homem”. Em lugar de um livro filosófico sobre o conceito de gênero, desta vez a autora nos apresenta uma obra acerca das formações discursivas mobilizadas pela direita que fortalecem um imaginário social conservador e, por vezes, fascista. Ao introduzir o problema de pesquisa que guia seu livro, Butler nos lembra que o Papa Francisco chegou a comparar o poder destrutivo da “teoria de gênero” ao das armas nucleares. Em vista do espanto provocado por declarações desta estirpe, a autora questiona de que modo o gênero, este significante outrora corriqueiro, tornou-se um fantasma capaz de reunir e exacerbar uma multiplicidade de pânicos modernos, que vão da pedofilia ao imperialismo cultural? Como esse termo passou a condensar medos e ansiedades, muitas vezes contraditórios, para reuni-los sob um único nome?
Butler busca diagnosticar a emergência dos discursos antigênero recorrendo a materiais muito diversos: sermões clericais, decisões judiciais, pronunciamentos de líderes políticos e textos de pensadoras autodenominadas “feministas críticas ao gênero”. Nesse percurso, mobiliza textos de diferentes geografias, indo da Rússia aos EUA, do Brasil à Polônia, do Reino Unido à Itália. Seu objetivo é conferir inteligibilidade a uma constelação transnacional de ideias que, mesmo não possuindo coerência lógica ou comprovação empírica, desperta paixões políticas com efeitos bastante reais em várias partes do mundo. Nesse sentido, a pergunta que dá título ao livro não é um artifício meramente retórico, mas algo a ser respondido de modo bastante literal ao longo dos dez capítulos, somados a uma introdução e uma conclusão, que compõem a obra. Em uma formulação sintética, pode-se dizer que Butler procura demonstrar que o “gênero” funciona discursivamente como um repositório de angústias, ainda que não configure propriamente a causa delas.
Para a autora, o gênero assumiu o que ela chama de uma “forma fantasmática”, que eclipsou tanto seus usos acadêmicos quanto cotidianos para representar uma série de ameaças mortíferas à sociedade. Ela encontra na noção psicanalítica de “fantasma”, tal qual desenvolvida por Jean Laplanche, a chave teórica para compreender o modo como os discursos contemporâneos de direita figuram o gênero como um “significante sobredeterminado”, ou seja, como uma palavra que absorve ideias e angústias radicalmente variadas acerca do que ameaça o mundo. Dentre tais ameaças, Butler destaca os rompimentos dos laços sociais, a pobreza, as guerras e a crise climática.
Nesse sentido, a autora argumenta que fazer circular ideias acerca dos supostos poderes destrutivos do gênero é uma forma de produzir e amplificar medos existenciais. Por meio dessa dinâmica, indivíduos e instituições buscam aumentar seu poder político por meio de falsas promessas de redenção e restauração. Dito de outro modo, o gênero, entendido como fantasma, configura um cenário psicossocial, ou seja, uma forma coletiva de sonhar – e também de ter pesadelos. O passado que os opositores do “gênero” prometem restaurar é uma fantasia segundo a qual o restabelecimento de uma ordem fundada na autoridade patriarcal acabará com o medo, a ansiedade e a vulnerabilidade de quem experiencia as múltiplas crises da contemporaneidade.
Deste modo, a tarefa que Butler se impõe no livro não está centrada na simples denúncia e análise das falsidades enunciadas pelos discursos da direita acerca do “gênero”, tampouco na defesa de uma teoria de gênero específica, tal qual ela fizera em obras já clássicas da década de 1990, como Problemas de Gênero e Corpos que importam. Na verdade, neste novo livro, a autora parte de uma definição mínima de gênero, que o considera como “a rubrica segundo a qual consideramos as mudanças nas formas como homens, mulheres e outras categorias afins têm sido compreendidas ao longo do tempo”. Com isso, Butler deseja reconhecer que o significado do gênero permanece incerto e até mesmo enigmático no interior das disciplinas que se dedicam a estudá-lo. Assim, entendido de maneira honesta e rigorosa, gênero não configura um dogma ou uma construção teórica monolítica, mas um campo de debates.
Contrariamente, a autora defende que a recente “ideologia antigênero” possui um caráter restauracionista ambicioso e destrutivo, priorizando a ideia de um “passado” patriarcal idealizado e refratário à diferença. É nesse sentido que Butler aproxima os recentes discursos contra o gênero ao fascismo, entendido aqui como uma ideologia mobilizada ao longo do século XX para preservar uma ordem social – ou a ideia de uma ordem social – pré-existente, baseada no nacionalismo e no racismo.
Reestabelecer a família heterossexual burguesa como centro da organização social, prometem os ideólogos antigênero, faria com que o mundo retornasse a um estágio em que as crises que vivemos hoje deixariam de nos afetar. Trata-se, é claro, de uma mentira, de um sonho ou, nos termos do livro, de um fantasma. Mas por que é justamente a categoria do gênero que desempenha esse papel para os discursos reacionários do presente, e não qualquer outra relacionada ao pensamento progressista, como a própria ideia de classe?
Butler pontua que, mesmo que os discursos da direita expressem ideias bastante equivocadas e paranoicas quanto ao gênero, quem os mobiliza compreende, em alguma medida, que o gênero está relacionado ao próprio processo de corporificação, ou seja, às formas potenciais de viver e amar como um sujeito concreto no mundo. Segundo a autora, o temor explorado por líderes conservadores é de que uma onda de sexualidade não licenciada, que supere o tabu da homossexualidade, por exemplo, leve a um sentimento ou prerrogativa de que todos os vínculos sociais possam ser destruídos. Butler não acredita nem defende essa hipótese. Ainda que aponte que consagrar os direitos das pessoas LGBTQIA+ represente a possibilidade de um futuro com maiores potenciais de liberdade e igualdade, a autora sustenta que isso não significará a superação de todo e qualquer tabu sexual, como aqueles que interditam sexo com crianças ou animais, por exemplo. Ao contrário, a autora atribui essa associação indevida entre a superação de um tabu específico com o rompimento de todo o tecido social com o próprio cenário fantasmático discursivamente criado pelos ideólogos antigênero. Nestas enunciações escatológicas, a imaginação sexual representa um espectro de terror que destrói toda lei, de modo que as associações indevidas ganham precedência sobre os fatos.
Nessa toada, discursos que prometem “proteger as crianças” se tornam um dos principais eixos das campanhas da direita, ao mesmo tempo em que pessoas homossexuais e trans são acusadas de pedofilia e outros abusos infantis. A “criança” se torna o símbolo do investimento discursivo em um passado patriarcal idealizado, ao mesmo tempo em que passa a encarnar o futuro conservador a ser sonhado e defendido. A população LGBTQIA+, por seu turno, passa a representar aqueles que devem ser eliminados. Como podemos observar, a aproximação entre a ideologia antigênero e o fascismo não configura um exagero argumentativo por parte de Butler.
Assim, se os discursos antigênero representam uma modalidade de imaginação coletiva, uma forma regressiva de sonhar, não bastam fatos e argumentos racionais para combatê-los. É necessário, para Butler, o estabelecimento de um contraimaginário, uma forma de “imaginação crítica poderosa o bastante para se contrapor ao fantasma”. Esse contraimaginário deve consistir, segundo ela, em uma visão ética e politicamente convincente, capaz de expor e se opor à crueldade e à destruição posta em circulação por aqueles que usam o gênero como emblema para os males do mundo. De modo prático, se opor ao discurso transnacional dos ideólogos antigênero passa pela construção de uma coalizão também transnacional que reúna e mobilize todas aquelas pessoas que foram definidas como alvos, como os que devem ser eliminados em favor do fantasma regressivo da sociedade patriarcal.
A formação de uma coalizão, é claro, nunca é tarefa fácil. Butler nos lembra das palavras de Bernice Johnson Reagon: “Se você está em uma coalizão e se sente confortável, você sabe que a coalizão não é ampla o bastante”. Mesmo assim, está claro para a autora que o único caminho a seguir é a união dos grupos ora atacados em torno de um imaginário coletivo poderoso e regenerativo, capaz de afirmar a vida contra as inúmeras crises que a ameaçam. Em vista disso, é imperativo que esta coalizão seja capaz de defender as liberdades associadas às formas não hegemônicas de viver o gênero e a sexualidade a uma crítica contundente ao neoliberalismo e à devastação do planeta, bem como à continuidade da colonização e a todas as formas de racismo, incluindo aquelas que afligem migrantes. Nesse contraimaginário, em suma, a política de gênero jamais poderia ser descrita como particularista; de fato, ela atuaria em favor de sonhar e construir um mundo onde todos nós queremos viver.
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Gustavo Frota Lima e Silva é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pesquisador do núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Palnejamento (NDD/CEBRAP). Junto ao Center for Critical Imagination, desenvolve uma pesquisa acerca das publicações que contribuem para o avanço da imaginação crítica no âmbito do mercado editorial brasileiro.
Autoria
Gustavo Frota Lima e Silva