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Conteúdo de referência

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  • O Drama dos Muros

    Resenha de Estados Murados, Soberania em Declínio, de Wendy Brown Editora Kazimira 2024, Tradução de Mariana Strasscapa

  • Além do “sim” e do “não”

    Resenha de O direito ao sexo: feminismo no século vinte e um, de Amia Srinivasan (Todavia, 2021).

    Gustavo Frota Lima e Silva

O Drama dos Muros

Resenha de Estados Murados, Soberania em Declínio, de Wendy Brown Editora Kazimira 2024, Tradução de Mariana Strasscapa

De modo surpreendente, os muros se tornaram um dos elementos distintivos da paisagem política das primeiras décadas do século XXI. A queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha e o fim da União Soviética e da “cortina de ferro” que dividia a Europa pareciam apontar, ao longo da década de 1990, para um futuro de intensificação dos fluxos de informações, pessoas e capitais através das fronteiras nacionais. De fato, havia certa euforia em relação aos efeitos da globalização e das possibilidades abertas por uma nova ordem multipolar, em que a democracia prevaleceria como forma de governo e as “leis do mercado” se encarregariam de regular o trânsito internacional de commodities e produtos industrializados, além de mão-de-obra, ideias e culturas. Entretanto, de modo contraintuitivo, assistimos, na contemporaneidade, à proliferação de fronteiras fortificadas entre os Estados e de um número crescente de discursos tematizando a figura dos muros. Exemplos disso são a retórica em torno da expansão do limite murado entre México e EUA, central para a eleição de Trump em 2016; o “imaginário murado” do Reino Unido em relação às políticas migratórias e econômicas da União Europeia, que fortaleceu a direita conservadora britânica e foi decisivo para o Brexit; os muros entre Israel, Cisjordânia, Gaza e Egito, elementos centrais do cenário recente de intensificação de hostilidades e de crise humanitária no Oriente Médio; e as barreiras sanitárias à livre circulação de pessoas e mercadorias no contexto da pandemia de Covid-19, que desafiaram de modo definitivo a ideia de um futuro “sem fronteiras”.

Essa estranha (e aparentemente anacrônica) presença de muros físicos na realidade, no imaginário e nos discursos políticos dos anos iniciais do século XXI motivaram a escrita do importante livro de Wendy Brown, Estados Murados, Soberania em Declínio. Publicado originalmente em 2010, e atualizado pela autora em uma edição prefaciada de 2016, o livro ganha agora uma versão brasileira pela Editora Kazimira. Os quatorze anos que nos separam da publicação original demonstraram de forma inegável a importância do tema dos muros para o pensamento político. Os fenômenos aqui enumerados são, afinal, todos posteriores à publicação original da obra. Os muros, o que eles representam e os efeitos que produzem se tornaram onipresentes na realidade política contemporânea.

Ainda assim, a presença dessas estruturas fortificadas causa algum estranhamento. Muros, afinal de contas, não são capazes de conter os fluxos de humanos, de armas, de drogas, de bens tributáveis, de ideias e de culturas contra os quais são construídos. Não há justificativa econômica ou técnica para seu emprego, já que, em nossos dias, há modos e tecnologias de vigilância mais eficientes para o controle dessas movimentações. Nas palavras de Brown, à primeira vista, esses muros sempre falham. Não interrompem ou represam, mas apenas desviam as movimentações crescentes que se intensificam à medida que o processo de globalização se aprofunda. Ainda assim, se são ineficazes em sentido técnico e em termos de sua viabilidade econômica, deve haver uma dimensão na qual os muros funcionam, justificando sua presença crescente; e Brown identifica essa dimensão como fundamentalmente política.

     Para construir este argumento, desenvolvido ao longo dos quatro capítulos que compõem a obra, Brown emprega duas estratégias teóricas. A primeira delas envolve justamente elevar a figura do muro ao patamar de um conceito político. Mais do que uma série de realidades empíricas com materialidades (ferro, aço, arame, concreto), aparências e objetivos diversos, as fortificações muradas de fronteiras são consideradas como uma manifestação política coerente. Há aqui, portanto, um claro esforço de teorização, ou seja, de criação de uma figura abstrata, o muro, que dê conta de explicar uma série de fenômenos concretos da realidade. Já a segunda estratégia da autora corresponde ao estabelecimento de uma tensão entre esse novo conceito de muro e um conceito clássico da teoria política: a soberania.

     Brown dedica um capítulo inteiro de sua obra, o segundo, ao estudo de diferentes autores canônicos (Thomas Hobbes, Carl Schmitt, Jean Bodin) e contemporâneos que se ocuparam do tema da soberania. É a partir dessas leituras que ela delineia um entendimento geral de soberania estatal, este conceito histórico e teórico estabelecido a partir dos tratados de paz de 1648, que ficaram conhecidos como Paz de Vestfália e deram origem ao moderno Sistema Internacional, baseado na personalidade jurídica dos Estados Nação. Na medida em que nomeia um conceito, a soberania é interpretada por Brown como uma ficção e uma aspiração dos Estados, não no sentido de representar uma falsidade, mas sim uma série de atributos de controle sobre determinado território e população que nunca são totalmente concretizados, ainda que sejam operativos na realidade política.

     Desse modo, com o intuito de estabelecer a tensão analítica entre muro e soberania, Brown nos oferece um diagnóstico do tempo presente que identifica o momento em que vivemos como “pós-vestfaliano”. Trata-se de um momento em que, ainda que a soberania estatal não tenha sido superada ou esquecida, encontra-se em declínio como imaginário político que organiza as relações entre Estados, pessoas e outros sujeitos e atores políticos, tais quais empresas, corporações e Organizações Internacionais e Supranacionais. De fato, Brown identifica, nesse diagnóstico, uma série de paradoxos, dentre os quais destaca três: o primeiro diz respeito à fantasia de um mundo globalizado e sem fronteiras combinado às paixões estatais pela construção de muros e o fortalecimento de fronteiras; o segundo, à coexistência de uma concepção triunfalista e generalizada de democracia combinada a políticas de exclusão e estratificação; e o terceiro, à convivência de tecnologias avançadas de vigilância e destruição com a proliferação de barreiras fortificadas físicas e antiquadas. Assim, temos que, para a autora, essa realidade paradoxal descreve a erosão de uma imaginação política baseada na soberania estatal, com o fortalecimento de um imaginário pós-nacional e “sem fronteiras” (representado pelo processo de globalização e financeirização da economia mundial) e o surgimento reativo de um do que podemos chamar de um “imaginário murado”.

     Com esse diagnóstico teórico em mente, Brown é então capaz de descrever a efetividade política dos muros enquanto elementos teatrais, ou seja, elementos que envolvem a manipulação deliberada e discursiva do tempo e do espaço, de causas e efeitos. Citando Maquiavel, a autora reconhece que a política envolve sempre um elemento dramático, de modo que as figuras e os atores em cena no âmbito político são sempre representações saturadas das tensões que moldam a nossa realidade. É importante destacar, entretanto, que esse caráter ficcional ou teatral dos muros não é tomado como simples dissimulação ou falsidade, mas como uma formação discursiva capaz de encenar um tipo de soberania política que a globalização não mais permite ser efetivada pelos Estados. O terceiro capítulo da obra é dedicado a esses discursos políticos em torno dos muros, enquanto o último representa uma análise psicanalítica que aproxima o muro das noções freudianas (de Sigmund e Ana Freud) de mecanismos de defesa.

Para Brown, ainda que sejam um elemento historicamente constante, os muros engendram na contemporaneidade uma função específica, na medida em que se tornam os emblemas visuais e iconográficos de um tipo de poder e proteção que os Estados não podem mais prover. Eles dramatizam, em contrapartida, ficções estáveis e homogêneas de nação, que são efetivamente erodidas pelos fluxos de capital, finanças, pessoas, poder, culturas, religião e terror.  É neste sentido que devemos entender o título da obra: na medida em que a gramática política da soberania entra em declínio, sobem muros em seu lugar. Os muros representam, assim, um repositório de desejos e aspirações de defesa frente a forças contra as quais os Estados não podem mais nos defender. E eles são invocados, em nossos dias, nos discursos de duas constelações políticas distintas. De um lado, temos aquela representada pelos populismos autoritários, tão bem encarnados na figura de Trump. De outro, uma crescente tecnocracia pós-nacional, que reconhece apenas a soberania de tomadores de decisão empresarial e substituem princípios legais e políticos de governabilidade por critérios mercadológicos, reduzindo o ato de governar à noção de gerenciamento.

A autora identifica os perigos que ambas representam para a sobrevivência das democracias no Ocidente, mas deixa a cargo dos leitores pensar em imaginários alternativos e progressistas que possam se opor ao falso “mundo sem fronteiras” do neoliberalismo euro-atlântico e aos Estados murados da extrema direita. Mas, ainda que não articule de modo explícito essa alternativa, seu diagnóstico determina que ela deve necessariamente envolver uma noção reimaginada de soberania estatal e popular. Garantir que não sejam concebidas e implementadas como políticas muradas, reativas e antidemocráticas é a tarefa que agora nos cabe.


Gustavo Frota Lima e Silva é doutorando do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Junto ao Center for Critical Imagination, desenvolve uma pesquisa acerca das publicações que contribuem para o avanço da imaginação crítica no âmbito do mercado editorial brasileiro.

Linhas de pesquisa

Autoria

Gustavo Frota Lima e Silva

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