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Além do “sim” e do “não”
Resenha de O direito ao sexo: feminismo no século vinte e um, de Amia Srinivasan (Todavia, 2021).
Gustavo Frota Lima e Silva
Além do “sim” e do “não”
Resenha de O direito ao sexo: feminismo no século vinte e um, de Amia Srinivasan (Todavia, 2021).
Em 24 de maio de 2014, Elliot Rodger, um jovem inglês de ascendência asiática, cometeu o mais sangrento atentado incel de que se tinha notícia até então. Incel, ou “celibatário involuntário”, é, a princípio, qualquer indivíduo, independente do gênero, que têm suas tentativas de se envolver sexualmente com outras pessoas sucessivamente frustradas. A neutralidade do termo esconde, porém, sua realidade política: trata-se de uma categoria que nomeia uma subcultura muito ativa na internet, que reúne homens que culpam o feminismo contemporâneo por sua falta de acesso aos corpos, à companhia e ao trabalho de mulheres.
Rodger assassinou seis pessoas naquela tarde de maio em Santa Barbara, na Califórnia. O que tornou seu caso conhecido, entretanto, não foi exatamente a brutalidade com que deu fim às vidas de suas vítimas, mas o vídeo A Punição de Elliot Rodger, que postou no Youtube, e o manifesto Meu Mundo Deformado, que enviou para um grupo de conhecidos, dentre eles seus pais e seu terapeuta. Esses documentos reúnem os planos de Rodger para o massacre e, em especial, suas motivações: “Tudo que eu sempre quis foi me encaixar e ter uma vida feliz”, nos conta ele no manifesto, “mas eu era excluído e rejeitado, forçado a suportar uma existência solitária e insignificante, tudo porque as mulheres da espécie humana eram incapazes de ver valor em mim”. Rodger acreditava, enfim, ser vítima da violação de um direito: seu “direito ao sexo”.
Amia Srinivasan, filósofa e professora de teoria social e política do All Sounds College, na universidade de Oxford, parte do caso de Elliot Rodger para compor o ensaio que dá título a sua coletânea O Direito ao Sexo: feminismo no século vinte e um, publicada no Brasil pela editora Todavia. Seu livro é composto por seis textos e um prefácio que lidam com o que a autora chama de “política do sexo”, além das implicações de tal política para o pensamento e o ativismo feministas na contemporaneidade. Mas, o que significa pensar o sexo enquanto política? E de quais maneiras esse pensamento poderia contribuir para o projeto feminista de imaginar um mundo em que a “subordinação política, social, sexual, econômica, psicológica e física das mulheres” (p. 11) terminasse?
Para Srinivasan, as respostas para tais perguntas podem começar a ser elaboradas a partir da consideração do modo como os pensadores progressistas, em geral, e feministas, em particular, reagem ao tipo de argumento proposto pelo manifesto incel de Rodger, ou seja, à ideia de que o sexo configura um direito negado a certas pessoas, geralmente a certos homens. Srinivasan nos chama atenção para o fato de que, pelo menos a partir dos anos 1980, a parte mais influente desses pensadores e pensadoras passou a refletir sobre o sexo a partir de uma noção jurídica (e também liberal): o consentimento. Nessa formulação, “sexo” diz respeito a atos privados para os quais duas ou mais pessoas dizem “sim” ou “não”, consentem ou não consentem. Assim, considerar o sexo a partir da política significaria, grosso modo, separá-lo em não problemático (consentido) e problemático (não consentido), de maneira que as leis devam ser aplicadas para proteger vítimas e punir abusadores e estupradores.
Entretanto, o que fica fora de consideração e além dos limites de um exame crítico quando pensamos o sexo a partir dessa ideia de consentimento são os nossos próprios desejos: cada indivíduo deseja ou deixa de desejar estabelecer relações sexuais com quem quer que seja, sem que isso deva ser questionado. O erotismo passa, então, a ser considerado uma questão de escolha, de modo que preferências e desejos sexuais são entendidos como naturais ou instintivos. Ninguém teria “direito” a ser desejado, muito menos “direito ao sexo”.
Talvez a formulação mais conhecida desse pensamento tenha sido proposta pela pensadora feminista Rebecca Solnit, citada por Srinivasan: “você não consegue ter sexo com alguém a menos que a pessoa queira ter sexo com você”, do mesmo modo que “você não vai ganhar um pedaço do sanduíche de alguém a menos que a pessoa queira dividi-lo com você” (p. 119). Não dar uma mordida no sanduíche de alguém não configura uma violação de direitos. O que parece ser muito simples, porém, se complica quanto mais tempo passamos com essa metáfora. Suponha, propõe Srinivasan, que, ao voltar da escola, seu filho conte que as crianças dividem seus sanduíches umas com as outras, mas não com ele. Indo além, suponha que ele seja negro, ou gordo, ou deficiente, ou imigrante, e que você desconfie que tal característica esteja na origem de sua exclusão dessas práticas de partilha. Como vemos, não parece ser suficiente dizer que nenhuma criança é obrigada a dividir seu lanche, por mais que isso seja verdade.
É claro que sexo não é sanduíche. Entretanto, ainda que concordemos que ninguém deve seu corpo ou companhia a outra pessoa, existe mais política em nossos desejos do que talvez estejamos prontos a admitir. De que modo alguns corpos ocupam lugares altos ou baixos nas hierarquias de desejo? Como homens asiáticos, como Elliot Rodger, passam, nas sociedades multiculturais do ocidente, a representar figuras pouco viris e masculinas, ao mesmo tempo em que suas irmãs encarnam o um ideal altamente valorizado de submissão feminina? De que modo pessoas negras tornam-se associadas a noções de promiscuidade? O que faz com que pessoas com deficiências sejam menos desejadas?
Perguntar isso leva a “política do sexo” para além da noção de consentimento: é admitir que os desejos não existem fora do contexto racista, machista, heterossexista e capacitista onde vivemos, ou seja, não existem fora de nosso próprio mundo social. Significa, ademais, politizar desejos e vontades sexuais que pareciam naturais, simples questões privadas de preferência.
Isso não quer dizer que possamos pensar o sexo como um direito, ainda que na linguagem do ativismo político de pessoas com deficiência essa ideia possa, por vezes, aparecer de modos interessantes e até mesmo propositivos. Afinal, pensar em ter direito ao sexo, em ter direito sobre o corpo alheio, nos diz Srinivasan, nos aproximaria de modo perigoso de “pensar como um estuprador” (p. 126). Ainda assim, ela insiste que é preciso considerar de forma cuidadosa essa questão, sem que um “sim” ou “não” a resolva de uma vez por todas.
Nos ensaios que compõem a coletânea, a autora nos convida a refletir de modo perigoso e desconfortável sobre a política do sexo. Ela procura nos mostrar que pensá-la apenas a partir do consentimento esconde aspectos profundamente políticos de nossos desejos e os protege de possíveis críticas sociais e culturais. Mais do que isso, ela aponta que entender o encontro entre o sexo e a política unicamente a partir da punição para estrupradores esconde uma série de injustiças sociais: de raça, casta, classe, sexualidade e deficiência. Assim, Srinivasan aponta como são criadas, no imaginário coletivo e nas práticas sociais, divisões e tipologias de corpos estupráveis (mulheres brancas) e não estupráveis (homens e mulheres negras), estupradores (homens negros) e não estupradores (mulheres e homens brancos), merecedores de proteção (mulheres casadas) e não merecedores (trabalhadores do sexo).
A noção de consentimento opera, em outras palavras, não apenas como uma ferramenta para a promoção da justiça. Especialmente quando é tomada como a forma única de se pensar sobre a política do sexo, ela atua como um bloqueio, um embotamento à imaginação feminista. Srinivasan nos alerta que uma política feminista realmente radical deve ser uma política de coalizão, que una as pessoas em torno do exercício de imaginar um mundo justo, sem divisões e naturalizações que escondem injustiças. Ousar, com ela, a pensar além do “sim” e do “não” pode ser o primeiro passo dessa missão.
Gustavo Frota Lima e Silva é doutorando do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Junto ao Center for Critical Imagination, desenvolve uma pesquisa acerca das publicações que contribuem para o avanço da imaginação crítica no âmbito do mercado editorial brasileiro.